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Se um viajante nas formas do tempo romanesco

Isabel Cristina Corgosinho

18 de fev. de 2024

Acerca do livro Collezione di sabbia, de Italo Calvino.

No capítulo III do livro Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin escreve um texto sobre O tempo e o espaço nas obras de Goethe. Para o filósofo russo, Goethe tinha a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo. Os espaços, no entanto, estão como um todo em formação, como acontecimento, não é um fundo imóvel e um dado acabado. O tempo cíclico em grau variado de intensidade constitui o todo em movimento, que abarca tanto a natureza quanto as regras e ideias humanas.


As imagens inscritas na obra do italiano Italo Calvino em nada deixam a dever ao escritor alemão. O livro Collezione di sabbia, escrito em 1984 por Calvino, trata de registrar suas experiências de viagem como alguém que vivencia um processo de desenraizamento, um colecionador de novas cartografias. O roteiro das viagens é ditado pela excitante curiosidade que move o escritor italiano a buscar no mundo da cultura estrangeira alimento para o seu desejo de escritura. Leitor ávido da grande paisagem semiótica que molda o mundo, capta com o olhar permanentemente estrangeiro a diversidade de formas que o tempo inscreve nas faces prismáticas de todas as coisas com as quais o viajante se deixa levar.   


O livro divide-se em quatro partes: a primeira chama-se Exposições e explorações; a segunda, O raio do olhar; a terceira, Relato do fantástico. O nosso artigo focalizará a última, denominada A forma do tempo. Ali seguimos com Calvino em suas digressões e observações, sempre atentos ao olhar inaugural do colecionador das formas nos tempos e espaços: Japão, México e Irã são os contextos de perscrutadoras leituras, que o próprio Calvino define como “onívora curiosidade enciclopédica e discreto afastamento de qualquer especialismo (...)”   


O visível e o ato de ver transformam-se no ver da imaginação, liberando a mente aos exercícios de interlocuções com o já visto e o já lido com tudo que se abre a partir do contato com as histórias de outras civilizações e os seus signos representativos como objetos, paisagens, palácios, jardinas, natureza, museus, ruas, cenários, pessoas, atmosferas e olhares.   


O que dá forma ao tempo? Como interpretar o passado com o olhar ensimesmado neste presente, que nos remete velozmente ao futuro? O estrangeiro é aquele capaz de restaurar na paisagem aquilo que as pessoas que lá estão já não são mais capazes de ver: “Novo no país, ainda estou na fase em que tudo o que vejo tem um valor próprio, pois não sei que valor atribuir às coisas.” (CALVINO, 1984, p.166).

O projeto de Calvino, em suas manifestações de viagem, é aprimorar a capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial de outras civilizações. Esse olhar que preenche os espaços é aquele que percebe esse preenchimento não como um fundo imóvel e um dado acabado: é um olhar que transforma e, ao mesmo tempo, é transformado, é um todo em formação, o olhar como inventividade, como acontecimento único no encontro de alteridades. É um olhar capaz de ler os indícios do curso do tempo em tudo: ora é uma leitura indiciai que se opera nos elementos da natureza ora é essa leitura cruzada com as regras e ideias humanas:


Quando tudo tiver encontrado uma ordem e um lugar em minha mente, começarei a não achar mais nada digno de nota, a não ver mais o que estou vendo. Porque ver quer dizer perceber diferenças, e, tão logo as diferenças se uniformizam no cotidiano previsível, o olhar passa a escorrer numa superfície lisa e sem ranhuras. Viajar não serve muito para entender (...), mas serve para reativar momentaneamente o uso dos olhos, a leitura visual do mundo. (CALVINO, 1984, p.166)


A crônica sobre A velha senhora do quimono violeta ilustra a face complexa de um Japão que se transformou em “uma metrópole onde tudo pode acontecer ao mesmo tempo, como em dimensões não comunicantes entre si e indiferentes; cada acontecimento é circunscrito, constitui uma ordem em si, que a ordem circundante delimita e engloba.”  Mas o olhar do escritor capta os movimentos de cenas cotidianas de um Japão que ainda veste seus quimonos tradicionais e conserva a reverência dos jovens pelos velhos. Calvino procura nos fragmentos da cidade possibilidades interpretativas de sua organização social e política, mas também, das subjetivas cenas da vida doméstica dos japoneses, nos modos de relacionamento entre gerações.


No O avesso do sublime, o espaço dos palácios Kyoto revela-se na temporalidade das formas da natureza: as composições dos jardins são paisagens poéticas, mas são também visões políticas e filosóficas sobre o mundo. Na perspectiva semiológica de Calvino, todos os signos (sejam simbólicos, indiciais ou icônicos representados nas cores, nas formas e nos movimentos das árvores sob o reflexo sol, no voo dos pássaros, nas disposições das pedras, nos movimentos das águas) criam uma relação indissolúvel com os respectivos momentos da vida humana, dos costumes, das relações de trabalho, que constituem o tempo cíclico em grau variado de intensidade.


Mas o custo da cultura não é sempre este?”objeto”. Criar um espaço e um tempo para refletir, imaginar e estudar pressupõe uma acumulação de riqueza, e por trás de toda acumulação de riqueza há vidas obscuras submetidas a cansaços, sacrifícios e opressões sem esperança. Todo projeto ou imagem que permita tender a outro modo de ser para fora da injustiça que nos circunda leva a marca da injustiça, sem a qual não teria sido concebido.


Cabe a nós enxergar este jardim como o ‘espaço de uma outra história´, nascido do desejo de que a história corresponda a outras regras”(...).  (CALVINO, Italo, 1984, p.178)     

  

O que fica demonstrado nessa citação é que os indícios complexos do tempo histórico são vestígios visíveis da criação humana, signos que revelam a presença da mão e da inteligência do homem, seus percalços, seus sonhos, aventuras, suas dores e sacrifícios. Com base em tudo isso, o olhar perscrutador do artista interpreta as intenções mais complexas das gerações, das épocas, das nações, dos grupos e classes sociais.    


No templo de madeira, Calvino registra indícios de um sistema oriental sobre o tempo que se distingue sobremaneira do modo ocidental, onde as construções em pedra se caracterizam como antigas pelo estado de conservação em que se encontram. No universo de madeira dos jardins japoneses, o antigo caracteriza-se pelo perecível de seus elementos. O que perdura é a forma ideal dos jardins, palácios, vilas e pavilhões que são construídos de madeiras, que perecem pelos mais variados destinos, mas que são renovadas, repostas obedecendo a forma de sua antiguidade.


(...). O que o templo de madeira nos pode ensinar é isto: para entrar na dimensão do tempo contínuo, único e infinito, o único caminho é passar através de seu contrário, a perpetuidade do vegetal, o tempo fragmentado e múltiplo do que se alterna, se dissemina, brota, resseca ou apodrece. (CALVINO, Italo, 1984, p. 181)       


Ao caminhar pelas trilhas de pedras da vila imperial de Katsura, Calvino se depara com a razão essencial dos mil jardins, cujos percursos são mais importantes que os jardins em si mesmos. Foram planejados de forma a conduzir os visitantes às mais inusitadas perguntas e interpretações, como um texto cuja abertura semântica desconstrói o condicionamento do olhar e do andar: “se há uma mensagem, é a que se colhe nas sensações e nas coisas, sem as traduzir em palavras” .


Na visita ao México, Calvino privilegia como forma do tempo a leitura das arvores, sejam elas concretas ou representações icônicas e figurativas da árvore genealógica. Em todos os casos, as partes dos vegetais são interpretadas de forma a possibilitar a compreensão daquilo que está impregnado ao movimento de transformações biológicas. Da leitura que faz delas, Calvino abstrai os discursos sobre o tempo, a ideologia, transcendência etc. O visitante italiano se depara com uma testemunha de raízes profundas no tempo, A Árvore de Tule, uma Taxodium distichum, de quarenta metros de altura e 42 metros de perímetro, lá estava antes da Conquista. A forma do tempo aqui se revela na força concreta da natureza em toda sua plenitude de ser vivo. E preciso ler nas suas raízes aéreas, no seu tronco atual uma história de incertezas, geminações, desvios. Semiólogo atento, Calvino investiga cada uma de suas partes em dinâmica transformação no tempo: a interpretação de um ser vivo que da redundância alcança a duração, da perturbação de sua sintaxe vegetal alcança um nível superior. Os demais turistas depositam nas câmeras a tarefa de registrar apenas a imagem congelada no tempo. O que diferencia o olhar do turista comum com a perscrutadora lente do artista? Calvino viaja em busca de desvelar, redescobrir nas formas de paisagens, objetos, eventos aquilo que pode informá-lo sobre o modo como os homens se organizavam, pensavam a cultura e, portanto, como construíam um projeto de existência para o próprio homem.


As formas são recriadas objetivando o interesse de conhecer, nos espaços dessas construções sejam elas naturais ou construídas, o modus vivendi e o modus operandi de outras épocas em diferentes culturas no mundo. Ao contrário do registro automatizado das câmeras dos visitantes, o olhar do artista tem como objeto atualizar na arte as formas do tempo, e as transformações que o tempo opera nas formas de tudo que existe. E para a literatura que vai o constructo do tempo grande do existir do mundo.


A árvore de Tule, produto natural do tempo, e a árvore de Jessé, produto da necessidade humana de conferir uma finalidade ao tempo, são apenas aparentemente redutíveis a um esquema comum. Encontrando-as na mesma jornada de meu itinerário turístico, sinto estender-se entre elas a distância entre o acaso e o desígnio, a probabilidade e a determinação, a entropia e o sentido da história. (CALVINO, Italo, 1984, p. 206).


No Irã, a vertiginosa descrição recai sobre O Mihrab, datados dos séculos XIV e XVII, espécie de nicho que, nas mesquitas, indica a direção de Meca. Após a minuciosa contemplação desse nicho, Calvino percebe ali a ideia de perfeição perseguida pela arte, a sabedoria acumulada na escritura, o sonho do contentamento do todo desejo que se exprime no esplendor dos ornatos. Tudo isso para tentar exprimir algo que não existe, e que deve continuar não existindo, não deve ser nomeado, apenas sutilmente apreendido em pura sensação provocada pelo olhar intenso de mirar o que é impossível descrever. O aprendizado do escritor acontece quando percebe que nas formas do vazio encontram-se as coisas mais importantes no mundo. A cavidade é um lugar do não sentido, do não dado, do não referencial. As formas entalhadas em negativo sugerem que o valor da sombra é mais importante que o corpo físico que a projeta.  Esse tipo de forma projeta um tempo em constante devir, um tempo que só é apreensível a partir de um olhar que o preencha com a multiplicidade dos feixes projetados pelos olhos do observador. E a forma construída a partir do olhar atemporal sobre as coisas.


Ainda sobre o Irã, Calvino escreveu as crônicas As chamas em chamas e As esculturas e os nômades, que deixaremos para análises posteriores.        


 As formas do tempo, captadas nas viagens do homem Calvino, trazem valorosos subsídios ao conjunto de sua obra literária. Casos exemplares desses viajantes em sua obra são os personagens Marco Polo do livro Cidades Invisíveis e o Leitor de Se um viajante numa noite de inverno. Livro no qual focaremos nossa interpretação para pensar a presença desse tempo grande na criação literária, a fim de entender de que maneira os gêneros atribuem temporalidade à escrita romanesca.


O que Calvino almeja para seu leitor quando lhe oferece um romance construído de fragmentos de gêneros de romance? Evidente se torna a homenagem à tradição autoconsciente da criação romanesca, mas sua intenção não se esgota nessa rememoração.


E preciso reconhecer que renovar a forma do romance exige hoje um deslocamento importante: a recepção toma lugar de protagonista na aventura da escrita romanesca. A continuidade que se pode dar ao diálogo com os grandes gênios da literatura demanda força criativa ao aliar reflexão metanarrativa e sedução ao texto de prazer, cujo conteúdo envolve importantes pilares que formam o sistema literário, como acontece no bem sucedido jogo de armar presente na obra Se um viajante numa noite de inverno, escrita em 1979.


Sobre a concepção de se escrever um romance, cuja arquitetura é composta por breves enredos que se interrompem de forma sempre inusitada, o escritor-criativo Silas Flannery remete à mesma dinâmica de nosso tempo que se estilhaça, lançando-nos ao acaso temporal e descontínuo.   

 

Hoje em dia, escrever romances longos é um contra-senso (sic): a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual a sua própria trajetória, e logo desaparecem. A continuidade do tempo só pode ser reencontrada nos romances da época em que o tempo, conquanto não parecesse móvel, ainda não se estilhaçava. Um período de cerca de cem anos. (CALVINO, 1997, p.16)


Além de nos oferecer mais uma das motivações que estão na base dos enredos interrompidos: o contrassenso de escrever longos romances num tempo que se fragmenta de forma aleatória; a citação contém uma definição cronotópica capaz de instruir a leitura dos dez episódios que se oferecem como trilhas para que o Leitor possa ir construindo, apreendendo as complexas e variadas maneiras pelas quais se podem entender a relação das pessoas com a temporalidade que se inscreve no mundo.


(...); um romance que fala de trens e estações não pode deixar de transmitir um cheiro de fumaça. Você já avançou várias páginas em sua leitura, seria hora de dizer-lhe claramente se a estação onde desembarquei de um trem atrasado é uma estação de hoje ou de outrora; mas, ao contrário, as frases continuam a mover-se no indeterminado, no cinzento, numa espécie de terra de ninguém da experiência reduzida ao mínimo denominador comum. Fique atendo: essa certamente é uma estratégia para envolvê-lo pouco a pouco no enredo, para capturá-lo sem que você perceba _ uma cilada. Ou talvez ou autor ainda esteja indeciso, como de resto você, leitor, ainda não está seguro do lhe daria mais prazer na leitura: se a chegada a uma velha estação, que lhe sugere um retorno, uma recuperação do tempo dos lugares perdidos, ou se um relampejar de luzes e sons, que lhe dá a sensação de estar vivo hoje, à maneira que hoje se acredita ser um prazer estar vivo. (CALVINO, 1999, pp. 19-20)


Daí o motivo cronotópico da estação como o primeiro lugar a transportar o Leitor contemporâneo a tempo/espaço de enredos-fragmentos saturados de passados, reminiscência de leituras, citações explícitas, implícitas de autores e obras, rememorações de imagens, inserção de temas e imagens das sociedades arcaica e tecnológica. Imagens que faz do romance Se um viajante uma porosa tessitura intertextual, inseminada de futuro e propícia ao exame das numerosas possibilidades concretas e pormenorizadas que os gêneros literários elaboraram.


O Leitor depara, nos enredos interrompidos, com diversos gêneros que o remetem aos cronótopos de narrativas psicológicas, policiais, aventurescas, poéticas, romanescas, fantásticas, eróticas, revolucionárias, como possibilidade de atualização das formas de narrar pelo envolvimento do leitor contemporâneo com as narrativas do seu e de outros tempos.  


A não finalizabilidade dessa obra resulta na imprevisibilidade da própria estrutura da obra, que deixa em aberto os finais dos enredos, em cujos contextos os modos de agir das personagens são sempre surpreendentes, lançando-nos num mundo onde tudo pode acontecer subitamente. Os signos indiciais deixados nas trilhas não nos garantem a proximidade com aquilo que buscamos, o Leitor-personagem e nós leitores empíricos só temos certeza do inusitado. A obra se oferece como um campo profícuo para criar os mais excitantes debates, diálogos entre personagens de diferentes campos ideológicos, profissões, planos de fundo e épocas diferentes. Para Bakhtin, a não-finalizabilidade deve ser imanente ao fazer criativo e sempre processual.   É a própria Leitora que assim define o ato de leitura:


Ler é ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém sabe ainda o que será... e o livro que eu gostaria de ler agora é um romance em que se narre uma história ainda por vir, como um trovão ainda confuso (CALVINO, 1999, p.79).


No capítulo Formas de Tempo e do Cronótopo, Mikhail Bakhtin (1993) defende que as descobertas mais ricas sobre a relação entre as pessoas e os eventos no tempo e no espaço foram feitas pelos gêneros narrativos da literatura.


Os teóricos Gary Saul Morson e Caryl Emerson (2008) trazem conceitos chave da construção do pensamento bakhtiniano, no que diz respeito à questão da autoria, da não finalizabilidade, da prosaística e do complexo conceito de cronótopo do romance. Segundo os autores, para que haja verdadeira compreensão das obras literárias, na visão de Bakhtin, faz-se necessário investigar em profundidade os cronótopos da leitura e da criação, no que diz respeito “à sua situação [do ouvinte ou leitor] cronotópica e ao seu papel na renovação da obra. (...) toda obra literária olha para fora de si mesma, em direção ao ouvinte-leitor, e até certo ponto antecipa possíveis reações a ela própria”. (MORSON & EMERSON, 2008, p. 427) 


O autor expõe ao leitor a metamórfica face do romance contemporâneo, moldado pela dês-referenciação dos cronótopos. Nos dez episódios os tempos e os espaços vivenciados pelos personagens não seguem uma ordem cronológica. Ao contrário tanto as paisagens espaciais quanto a temporalidade apresentam, além da sincronia, a diacronia com o tempo dos Leitores personagens e tanto mais com o do leitor empírico. 


É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis. (CALVINO, 1999, p. 181)


Morson & Emerson (2008) definem a noção bakhtiniana cronótopo (literalmente tempo-espaço) como uma conexão intrínseca das relações temporais e espaciais que se expressam artisticamente na literatura. Depois de examinar os romances de viagem, de ordálio e de tempo biográfico, na perspectiva cronotrópica, Bakhtin volta-se para aquele que considera incomparavelmente mais raro, constituindo-se o seu principal interesse: o romance de emergência de uma pessoa (ou do “devir”, do tornar-se). Independentemente das diversas variantes desse tipo de romance, o herói e a imagem do herói mudam, tornam-se, desenvolvem-se. As mudanças vivenciadas pelo herói, diferentemente daquelas que meramente alteram o seu estatuto, adquirem, no caso de Se um viajante numa noite de inverno, significação de enredo, e com isso o enredo inteiro do romance é reinterpretado e reconstruído.   

   

Bakhtin concentra-se no grau de assimilação do tempo histórico real, para identificar cinco tipos de romances de emergência, essa variável de assimilação é entendida como à medida que um dado tipo de romance compreende a relação do devir de um indivíduo com as mudanças sociais e históricas.


(Começar. Foi você quem o disse, Leitora. Mas como determinar o momento exato em que começa uma história? Tudo começou desde sempre, a primeira linha da primeira página de todo romance remete a alguma coisa que já sucedeu fora do livro. Ou então a verdadeira história é aquela que começa dez ou cem páginas adiante, e tudo que a precede não é mais que prólogo. As vidas dos indivíduos da espécie humana formam um enredo contínuo, no qual toda tentativa de isolar um pedaço do vivido que tenha sentido desligado do resto por exemplo, um encontro de duas pessoas que se tornará decisivo para ambas deve levar em conta que cada um dos dois carrega consigo uma trama de fatos lugares outras pessoas e que desse encontro derivarão por sua vez outras histórias que se desligarão da história comum a eles.) (CALVINO, Italo, 1979, p.157).


A história dos romances e as histórias de vida, na reflexão do escritor personagem Flannery, é um inevitável caminhar, carregado de tramas que compõe uma esteira temporal descontínua, na qual podemos tecer, para nossa alegria ou infortúnio, outras histórias que inevitavelmente se desligarão da história comum de cada um de nós. Retomadas e rompimentos constituem a forma possível da constituição de alteridades seja na ficção ou na vida. O protagonista de casa enredo interrompido é também o autor de seu próprio texto, à sua história atual, vem juntar-se à lembrança fragmentos de outras histórias já longínquas ou recentes, todas inacabadas, com fios que se sobrepõem em tramas diferenciadas de uma mesma rede. Os seres são inconclusos, sequer a velhice é lugar de acomodação das experiências, os acontecimentos são inapreensíveis na vida, e o desafio do leitor é a aceitação do inapreensível na arte do romance. O ponto de interrogação ou reticências é constituinte do ato de escritura, mas também da leitura, que rejeita o ponto final finalizável. Os pontos são apenas ancoragens para se pensar a construção de sentidos para o mundo.


O Leitor-personagem de Italo Calvino se vê enredado na não finalizabilidade das tramas, salta de um ponto ao outro de forma a vivenciar o tempo de forma vertiginosa. Os personagens dos dez episódios surpreendem o Leitor pela complexidade de seus caracteres e pela capacidade de insurgir juntamente com o mundo. Além disso, refletem a emergência histórica, que se nos apresenta sempre como possibilidades de realizações por meio das ações e dos olhares dos personagens, que se mostram saturadas de tempo histórico: o homem transforma o mundo e é por ele transformado.  O tempo histórico satura a identidade da pessoa, mas ela própria conserva a iniciativa e não é apenas um produto do tempo histórico. Em tal cronótopo, como salientam Morson & Emerson (2008), pela primeira vez, “a força organizadora detida pelo futuro é, pois, extremamente grande”.


Dessa forma, é possível dizer que Se um viajante, embora não se expresse em base de romance realista, poderia ser incluído no quinto tipo de romance de emergência, caracterizado por Bakhtin como aquele em que as pessoas vivem o futuro como uma zona do desenvolvimento próximo. De forma que viver esse futuro, faz com que novos tipos de caráter e identidades nasçam juntamente com o mundo e a forma de emergência do mundo. Segundo Morson & Emerson (2008), esse tipo de romance compreende o anacronismo e sua relação com a personalidade; ou seja, ele compreende por que os tipos pessoais não são repetíveis de época para época e de cultura para cultura.


Essa concepção não só está presente no projeto artístico e crítico do autor Italo Calvino, mas explicita-se na forma compositiva de Se um viajante como convite aos leitores para que embarquem nas formas e gêneros romanescos, ocupando o lugar de condutores de um trem, cujo itinerário poderá ser uma fascinante aventura pelos trilhos da escrita e da leitura de histórias, e que essas os lancem aos braços de um longo e profícuo amor ao conhecimento do ser e do mundo. 


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Referências Bibliográficas

 

 

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini ET alii. São Paulo: Editora UNESP, 1993.

_______________. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CALVINO, Italo. Coleção de areia. Trad. Mauricio Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______________. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 274p.

EMERSON, Caryl; MORSON, Gary. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: EDUSP, 2008.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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