Por Celso Vegro
Pode algo ou alguém comportar significados que mesclam valores que se chocam? Na prosa poética de Sidnei Olívio - Tratado das significações originais (ed. Caravana), escrito no transcurso do ápice da pandemia no Brasil, essa paradoxal combinação de contrários o permite construir estranhamentos que conduzem o leitor por trilhas que sem sua imagética estariam fora de alcance. Quatro pilares literários sustentam sua escrita.
Primeiramente, as imagens raras - como requer a boa poesia, empregadas cirurgicamente ao longo da obra causam entorpecimento da mente que, perplexa, busca alguma interpretação. Perolar receios ou o uivo da realidade são exemplos dessas combinações que fazem faltar o chão. Um segundo pilar desse constructo literário ímpar se apoia nas conexões inerentes a natureza. A "penúria das manhãs" ou "o sol ascende as bordas do assombro" demonstram uma espécie de latência em que o tempo e seu curso se mantém vigilante sobre os seres e as coisas. A transição entre "equinócios e solstícios" completam seu curso ao redor das vertigens do narrador. São seres e coisas que se amalgamam por desígnios do tempo.
Outro pilar de sua construção é o conhecimento em ciências naturais, caudatário de sua formação superior. A "ceia de cupins afoitos" ou "moscas que não polinizam esperanças" são "crisálidas e ecdizes" a enxertar os versos que se abrem para assuntos comezinhos ou de natureza filosófica. Ao não se enclausurar na temática bioentomológica agrega elementos inusuais a prática poética. Por fim, porém sem dar por encerrada essa narrativa, o conteúdo de natureza existencial. Talvez, aquele que em maior volume semeia sua prosa. Produzido ao longo do "duplo vinte" - uma das prosas tem por título quarentena, destacando a finitude e a irrelevância de existir - "jamais pensei ser alguém", embora agarrando-se as fímbrias de sua existência proclama: "vida que desce a curva normal", conectando-se com "vida é avenida sem meio fio". Trata-se de uma espécie de compreensão odontológica da natureza trágica da vida como pontuou sabiamente existencialista cristão D. Miguel de Unamuno quando sintetiza: existimos no mundo e somos ocupados pelas coisas do mundo, sendo essa a condição intrínseca de nossa existência. Esse é o caminho que a prosa poética de Sidnei Olívio percorre ao prescutar sua trajetória de memórias referenciais.
Cenas urbanas entremeiam sua narrativa. Na "praça de geometria escalena a noite é ponto de putas e parto de histórias", denota esse mergulhar na experiência urbana com doçura, pois, "independente da cobra todos morderam a maçã".
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