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A RAZÃO-POESIA DE JORGE AMANCIO

Por Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Numa tentativa de generalizar as ideias de Charles Darwin (1809-1882) para a economia e a sociologia, Herbert Spencer (1820-1903) cunhou a expressão “survival of the fittest” (sobrevivência dos mais aptos), que se tornou o lema do darwinismo social. Nunca houve muita base científica para esse movimento, mais bem descrito como uma ideologia que buscava legitimar diferenças sociais e raciais. Nos últimos anos, porém, vêm ganhando corpo hipóteses que afirmam o exato oposto do darwinismo social — e elas parecem estar calcadas em ciência de boa cepa. Para essa corrente, foi a cooperação e não a competição que deu o tom da evolução humana. Survival of the Friendliest (sobrevivência dos mais amigáveis), livro de Brian Hare e Vanessa Woods (2020), tenta demonstrar essa tese. Os autores sustentam que o principal diferencial entre o Homo sapiens e outros hominínios que acabaram extintos foram a intencionalidade comunicativa e a atenção conjunta.


Intenção, comunicação, atenção e conjunto acontecem exatamente por se tratarem do incapturável, daquilo que não se deixa apanhar, do eternamente fugidio. De tempos em tempos, o pensamento necessita girar, soltar suas amarras e lançar-se em mar aberto. Nada se mantém se o ser-que-busca, o ser-aberto, não estiver em atividade. Os racionalistas empedernidos ficariam espantados com esse possível vir-a-ser da razão: a poesia. Nesta perspectiva, a “Razão-Poesia” – conforme termo cunhado por Florence Dravet e Gustavo de Castro (Comunicação e Poesia: itinerários do aberto e da transparência, 2014) – se dá por meio de doses regulares; são as injeções do estranho, do inusitado, do raro, do incomum, do instigante, do perplexo, do intrigante, que encontram inicialmente no outro defesas reais advindas dos mecanismos de bloqueio racional, de proteção contra o novo. A segurança é o oposto da comunicação. Quem busca comunicação é porque quer flertar com o desconhecido, com aquilo que foge dos padrões; trata-se de mergulhar sem ter certeza de que há, de fato, água no reservatório. Mergulho no nada, no não marcado, de certa forma, no impensado, naquilo que explode a moldura do já sabido.


A razão continua tecendo fios ignotos em dimensões abertas, ainda incompreensíveis. Costuma sustentar bandeiras em labirintos abstratos, por vezes caminha como um vidente em noite escura. Foi isso o que intuiu Roberto Juarroz (1925-1995): “o papel do poeta é bem humilde, porque consiste em estar a serviço da sua noite”. Acontece que as bases da poesia residem num fundamento polissêmico e multiunívoco. Não valeria a mesma base para a razão? A poesia é, por isso, um perigo à razão, adverte-nos, entre outras coisas, Platão (427-347 a.C.). O que ele esqueceu de avisar é que a poesia seria também uma possibilidade. Uma possibilidade ao trabalho da razão.


É claro que o termo e a ideia do “consolidar” são perniciosos. Um saber que se pretende dinâmico e continuamente mutável deveria expurgar todos os elementos que sugiram permanência, fixidez, retenção. Mas o consolidar, neste caso, é apenas uma figura retórica, pois nada se consolida de fato mas funciona como estabilidade instável, estrutura provisória, válido para este exato momento. O pensamento é “o leopardo que mata moscas inoportunas” – como nos chama atenção o título do livro de Jorge Amancio (2023). As pessoas mudam a cada dia, tornam-se diferentes, mas são elas mesmas em permanente mudança, alterando-se e permanecendo si mesmas de outra maneira por um estranho processo de continuidade na mudança. A comunicação é catalisadora da mudança; a informação a detém. “O que não é haikai é oriki” – argumenta Amancio, driblando a realidade para fazer o gol da imaginação.


O interesse, creio eu, é manter a coisa viva. Exatamente o contrário do que pretende a ciência, cuja intenção é a de fazer a dissecção do objeto. Por sua vez, a razão-poesia de Jorge Amancio advoga pela causa da pesquisa dos resquícios, a pesquisa daquilo que não deixou pistas, pelo menos materiais, a pesquisa das sensações. Esse movimento, esse conflito, essa quebra de padrões e de regras, essa guerra de posições que irá deixar, no final, muita coisa transformada, conforme avança o saber ancestral encarnado por Amancio: “cabeça de cobra/assovia bebe água/olha o mar banhar o sol!/olha o mar doar peixes!/faz o torto endireitar/faz o direito entortar/o bem-te-vi cospe flores/a lesma listrada caga verde/mira no amanhã/acerta o ontem” (A pedra sangra na floresta).


O leopardo que mata moscas inoportunas é um acerto de contas sobre os atentados diários que insistem em ceifar o encantamento do mundo como obra de arte. “E quando se trata de um artista, toda a fraqueza capaz de embotar o poder de criação é nada mais nada menos do que um crime” – avisa Oscar Wilde (1854-1900), em sinal de justa ira registrada no livro De Profundis e outros escritos do cárcere (1905). No mundo abatido pela necropolítica – como bem salientou o filósofo Achille Mbembe –, Jorge Amancio se lança contra as moscas inoportunas que vem matando leopardos covardemente. Os acomodados (os mais aptos) produzem a pior das violências: a indiferença. Só os incomodados não deixam em paz o que suprime as razões do bem viver.


No princípio era a roda. E a roda fez o mundo girar. A mata nos ensina de uma forma não sígnica, não linguística. Galhos secos estalando funcionam como nomes de ruas, diz Walter Benjamin (1892-1940); o vale na montanha lhe indicará as horas do dia. É uma outra forma de ouvir a cidade. Atentar para seus acordes, sua melodia, apreciar seu desenho, como se fosse a linguagem da natureza (A infância berlinense por volta de 1900, 1950). Com propósito, o saber de encruzilhada colhido por Jorge Amancio acolhe luz e sombra. É modelo de zelo e compreensão fora de série: “palavra que muito mata/transforma/miséria em alegria”.


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* Poeta, escritor, jornalista, crítico literário, professor, pesquisador e ativista social. Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG).


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