Por Gerald Thomas
“the 9th power of the 9th power of 9”
O ano, se não me engano, era 1990. Eu estava com espetáculos montados em Taormina (na Sicília) e em Zurich. Aliás, era o mesmo espetáculo que se dividia em dois, graças a uma observação levantada por Haroldo de Campos numa resenha (numa MEGA-resenha, aliás, de duas páginas inteiras) publicada na Folha de S.Paulo com o título “A M.O.R.T.E. e o PARANGOLÉ”.
M.O.R.T.E. 1 fazia sua estreia em Taormina minutos após M.O.R.T.E. 2 em Zurich na Rote Fabrik. Não tínhamos o que temos hoje: internet, Zoom, Google Meet, FaceTime, WhatsApp. Era via telefone mesmo e olhe lá.
Haroldo tossia do meu lado. Ele estava mais nervoso do que eu. “Não sei como eles vão conseguir atravessar essa onda de calor e loucura. Além do mais, o público europeu não tem essa informação caótica que se precisa ter para te acompanhar e para acompanhar o Joyce.”
“Para acompanhar o Joyce, Haroldo? Como assim?”
“Sim, tem estrofes inteiras de M.O.R.T.E. que são Joyceanas. Nem você notou enquanto escrevia, mas a tua leitura de Finnegans wake ficou aí dentro e teve ecos enormes. Como Goethe teria dito, ‘die Flügel sind Aufgewacht’ (‘as asas acordaram’).”
Eu não vi a sua esposa Carmen nessa viagem. Haroldo era altamente diabético e merecia atenção e, muitas vezes, uma certa repreensão em relação à comilança de doces.
E, justamente como uma asa que acordou, me dei conta de que o Haroldo levantou voo da arquibancada do anfiteatro grego de Taormina e desapareceu. Sim, ele fazia isso. Afinal, não era nenhuma criança. Estávamos sob um sol perigoso de quase 42 graus e um vento quente vindo da Tunísia chamado Scirocco.
Procurei relembrar a frase dita por ele há pouco. “Não sei como eles vão conseguir atravessar essa onda de calor e loucura.” Me parece ser citação de alguma prosa. Mas de onde? Era alguma pista? Seria de Ulysses? Seria de Dubliners? Ou do Retrato de um artista quando jovem?
Confesso que tenho alguma dificuldade com traduções. Já o mestre Campos é o mais brilhante “bailarino das versões”, diria eu. Mesmo assim, a língua portuguesa não me chega aos ouvidos na mesma rapidez que a inglesa.
“Heatwave...” seria sim algo a ser contemplado na obra de Joyce e de Homero.... e, obviamente, em toda.... “Veja bem, Thomas, estamos em 1990..... (seu maxilar travava um pouco, sua respiração um tanto quanto ofegante), estamos nesse ano com o número 9 predominando e muito aparente.”
(Haroldo então abriu um pequeno caderno de anotações em cuja capa se lia: “GT – S - # Beckett”, e já na primeira página constava essa observação).
“A esta altura, com as frações entrando em cena, não resta senão render-se aos cálculos de Joyce.”
Então, aqui vai (alguma alma corajosa pode verificar a matemática) – “...
“De acordo com os anos futuros arbitrários foram adicionados, pois se a proporção existente em 1883 tivesse continuado imutável, concebendo que isso fosse possível, até então 1904, quando Stephen tinha 22 anos, Bloom teria 374 e em 1920, quando Stephen então estaria com 38, Bloom então estaria com 646, enquanto que em 1952, quando Stephen tivesse atingido a idade máxima pós-diluviana de 70 Bloom, estando com 1190 anos de vida tendo nascido no ano de 714, teria ultrapassado os 221 anos a idade, ou seja, a idade antediluviana máxima, a idade de Matusalém, 969 anos, enquanto que, se Stephen continuasse a viver até atingir essa idade no ano 3072 d.C., Bloom teria sido obrigado a viver 83.300 anos!!!!! Bloom então poderia muito bem ter nascido (ou ter sido obrigado a nascer no ano 81.396 a.C.)”.
Haroldo fechou o caderno, passou um lenço na testa e enxugou o suor.
Haroldo:
“Precisamos nos encontrar em Nova York pra darmos um pulo na James Joyce Society. É importantíssimo. Mesmo que você o rejeite de pronto”.
Gerald:
“Sim, mas... claro... Eu não rejeito nada. Amo a história da Sylvia Beach e da Shakespeare & Co. e o que ela fez pelo Joyce” .
Haroldo... “porque lá você vai ver o poder do ‘the 9th power of the 9th power of 9, the nine. The power of the nine’”.
Não é fácil acompanhar o Haroldo. Podemos até acenar com a cabeça e dizer que sim como um sinal de cortesia ou uma forma de não interromper seu fluxo de pensamento. Sim, até isso.
Haroldo faz citações em hebraico, em aramaico, em russo e fisga do farsi. E, certa vez, íamos sendo guiados por uma cidade (não me lembro qual) em estado de total leveza (estávamos odiando o tal passeio turístico – de fato estávamos sendo “vítimas cativas desse horrendo anfitrião”) e começamos a falar em “código”. Ele no banco da frente do carro, eu atrás.
Eu: “pois então, Haroldo, eu nunca consegui decorar uma única frase de hebraico nem aquela coisa toda da Torah, da Bar-Mitsvah.... obrigatória... achei difícil pra cachorro”.
Haroldo: “pois você sabe que essa expressão ‘Difícil pra cachorro’ está justamente em um dos tomos do Talmud? Incrível você empregar isso assim intuitivamente. Poucas pessoas usam esse ‘para cachorro’ hoje em dia. Usa-se ‘pra burro’ que vem das montanhas húngaras e turcas, e “pra caralho”, que surge na América Latina ou Península Ibérica.... e vem justamente de encontro a Igreja Católica no início do século XX”.
Não havia nada que escapasse ao pente fino linguístico de Haroldo de Campos. Ele estava além da linguagem; além da semiótica. Derrida certa vez lhe escreveu (numa dedicatória) “Quando eu crescer quero ser Haroldo de Campos”.
“Encontrei com o Derrida na Sociedade Joyce lá em Nova York nos anos 70, acho. Bem, vamos indo?”
Ele tinha um trem pra pegar para Milão. Ia conversar com editores e fazer uma palestra. Eu ia fazer minhas estreias. Tínhamos esse encontro na minha casa em Nova York semana seguinte.
E assim foi. Conversamos muito sobre a sua peça inédita Graal – O retrato de um Fausto quando jovem, escrita em 1952. (que acabei dirigindo em grande escala com trinta e dois atores no palco do teatro Carlos Gomes no Rio em 1997). Conversamos sobre o mundo, como sempre fizemos. E, de tarde, fomos até a James Joyce Society na rua 47. É a rua dos “diamantes” (a rua dos judeus hassídicos – the Diamond district –, que existe na Antuerpia, e aqui).
Fomos até o 4º andar, como era de praxe.
We are Closed.
“The JAMES JOYCE SOCIETY will be closed throughout the summer till October”
E, logo abaixo da placa oficial, alguém havia grudado uma outra com rabiscos estranhos (pareciam cálculos matemáticos), que dizia assim:
“the 9th power of the 9th power of 9, the nine. The power of the nine the 9th power of the 9th power of 9, the nine. The power of the nine the 9th power of the 9th power of 9, the nine. The power of the nine”
“Tá vendo só?”, disse Haroldo numa espécie de riso e sarcasmo. “Esse número 9 é de matar qualquer um.”
“Não devemos enxergá-lo como a derrota do NOVO, não é Haroldo?”, hesitei.
Haroldo parou ofegante enquanto descia as escadas. Tomou fôlego entre o terceiro e o segundo andar e disse:
“Veja bem… que história é essa de Power of the nine se o nine vem após o OITO que se deitou e virou infinito, imbatível, supremo, soberbo, bíblico e universal? Como? Que história é essa de Power of the nine se o nine vem antes do Zero que representa o TUDO e o NADA, representa o próprio Oito deitado e em pé e tudo mais e o inverso de tudo e o nada?”.
“Haroldo, naquela porta estava o teu Galáxias resumido. O recado era personalizado pra você, não acha?”, completei.
Descemos as escadas mudos.
O trânsito na 5ª Avenida estava um caos como sempre. Na época – antes do evento “Uber” –, eu usava três diferentes car services: “Carmel”, “Dial 7” e “Number 9”.
Para o nosso espanto, o único que respondeu a minha chamada foi o Number 9.
“Em outras épocas estaríamos pendurados em praça pública com a corda no pescoço”, disse Haroldo, soltando aquela fantástica gargalhada enquanto segurava a barba, sentado no banco confortável da limousine do Number 9.
Levei-o no McSorley’s pra beber uma Guinness do barril direto de Dublin – em homenagem a Joyce. Sorte nossa que o McSorley’s é na Rua 7.
New Paltz
Agosto 12, 2023
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* Gerald Thomas nasceu em Nova York, em 1954, onde morou até os 7 anos, quando migrou com a família para o Rio de Janeiro. Nos anos 70, mudou-se para Londres, onde começou sua carreira no teatro, seguindo carreira internacional. Em um de seus livros, Entre duas fileiras (Record, 2016), ele narra desde encontros e vivências com grandes ícones do século XX, como Samuel Beckett e Jean Genet, até relacionamentos tortuosos com artistas como Hélio Oiticica e Ellen Stewart. Foi um dos amigos mais próximos de Haroldo de Campos.
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