Por Luciana Barreto
No imaginário mítico ocidental, sob o signo do que não se revela de imediato, mas se oculta e a tudo arrasta, o inaudito canto das sereias é antevisto como temível, porém irresistível chamamento. Para Maurice Blanchot, ao evocar Homero e o emblemático encontro de Ulisses com esses seres sobrenaturais, resta o “desespero muito próximo do deslumbramento”. Assim nos chega (e nos captura) a obra de estreia de Jade Luísa: _O olho esquerdo da lua_ (Penalux, 2021). Estruturado em quatro atos, o livro-poema da jovem potiguar comporta igualmente fascínio e assombro ao consubstanciar essa potência primeva, impelindo a escritora à modulação da mais irreal das vozes, cujo percurso transcorre pelo corpo, afeito à violência primeira da iniciação, do erotismo exigido no curso da maturação da menina ancestral em meio a seus seios e guelras, em um território de carne, ossos e sangue que se liquefaz e se fusiona com as algas, luas e marés – “mel e sal” em seus poros.
Em sua trama, além de reservar o espaço cênico-poético para a figuração feminina – ora em sua face anfíbia ou de ave, ora animalescamente humana, a poeta urde prodigalidade ficcional e imagens extraordinárias em uma “rede runa redário” na qual a menina se faz mulher, obsedando o leitor ao relembrar o primeiro livro da biblioteca e “a árvore anciã/ do seu começo”, “o primeiro toque na vulta/ a primeira morte”, “o limiar entre a dança/ e a queda”, a “fronteira entre o penhasco e a pétala”. E em meio à vertigem da queda, “entre o cigarro e o cio”, em uma sintaxe enxuta e substantiva, porém imageticamente febril, dadas as metáforas ancoradas no campo semântico da hybris, da desmedida, do desejo deslizante em dor-torpor-fulgor, tanto o amor é consumado no corpo-delito quanto a linguagem, testada ao limite.
Em sua proposição “Viver como se acabasse de nascer/ Nascer como se acabasse de morrer”, Jade Luísa, ante um deus destituído e diminuto, atesta ainda que “o que nasce não é a palavra”, em nós sublinhando, junto ao abismal “olho da lua”, a nitidez do olhar-girassol de Alberto Caeiro: “a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez.” Há de se assumir a travessia: empuxo inevitável.
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