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NAVEGAÇÕES ENTRE ABISMOS:UMA LEITURA DE SÍLVIA SAES

Por Claudio Daniel


Ezra Pound escreveu que a poesia está mais próxima da música e das artes visuais do que da literatura. Paulo Prado, mais enfático, afirmou que a literatura e a filosofia são inimigas da poesia. A distinção entre poesia e literatura é sempre tema controverso, mas podemos concordar com o autor norte-americano e com o brasileiro no sentido de que, na poesia, cuja origem mais remota é o canto, não importam tanto a narrativa, a presença de personagens ou mesmo de um conteúdo político, filosófico, religioso, existencial ou de qualquer outra natureza; o que interessa na poesia é a poesia, ou seja, sons, imagens, formas, a materialidade do poema enquanto corpo semântico (o que nos faz pensar numa erotografia ou erótica poética, a partir da inserção das palavras na pele do papel). Estas são apenas as referências imediatas que me vêm à mente após a leitura do livro de poemas Notas totais sobre partículas, de autoria de Sílvia Sales, publicado pela editora 7 Letras, obra dividida em três partes: a primeira, de título homônimo, constituída de cinco peças numeradas com algarismos romanos; a segunda, intitulada Enquanto a matéria queima; e a terceira, que tem a rubrica de Acometimentos.  Logo nas peças iniciais do volume tomamos consciência dessa materialidade semântica, não só pela linguagem substantiva e uso exclusivo de letras minúsculas, sem pontuação, mas também pela dicção concisa e visualidade, obtida pela espacialização das linhas, como acontece na peça inicial: “dentro de uma pedra / tem outra pedra / e dentro desta / tem uma outra / que também / tem pedra / dentro / dela”, células verbais que fraturam o discurso sintático-discursivo do verso e nos remetem, de modo intertextual, à conhecida pedra no meio do caminho de Drummond.  (A autora também utiliza, algures, o sinal de parêntesis, chaves ou reticências misturados e repetidos várias vezes, já sem função gramatical, mas como grafismos, à maneira de um ícones, para falarmos conforme os termos da semiótica de Charles Peirce. ) Neste poema, verificamos ainda algo de misterioso, indefinido, enigmático, como se fosse uma lacuna – ou várias lacunas – a ser(em) preenchida(s) pela imaginação do leitor, o que nos remete à “obra aberta” de Umberto Eco. Este poema inicial é dividido em nove seções; a última, destoando do conjunto, na forma de um inesperado anticlímax, é um texto em prosa que de certo modo fornece uma chave de leitura para todo o livro: “A ideia pensada como um focus imaginarius da razão, que provê uma direção, uma unidade ou sentido possíveis (Kant) não deixa de ser uma tintura nossa jogada sobre as coisas. É assim também que ela alaga abismos e permite amplas navegações”.  Em outros poemas desta primeira parte do volume, a autora também insere, no final dos poemas, pequenos textos em prosa, inclusive com pequenas narrativas, algumas com fundo histórico, como acontece no texto que remete ao Convento de São Francisco de Paraguaçu, onde os africanos escravizados eram castigados, há pouco mais de um século. Na segunda seção do livro, Enquanto a matéria queima, encontramos poemas com versos mais longos e uma certa fabulação, que pode remeter à lembrança de cenas vivenciadas pela autora ou simplesmente imaginadas por ela (neste caso, teríamos memórias inventadas). Assim, por exemplo, nesta peça: “30 de janeiro de 1965 por volta das 17 horas uma mulher de bobes encontra uma foto sua em que está de bobes e então mira o feitio, a cabeça cheia de círculos vazios ”. O tom prosaico e a temática cotidiana facilmente poderiam levar a autora a cair na armadilha de certa poesia recente, em que a facilidade é levada ao extremo, retirando da poesia qualquer valor artístico; não é o caso – felizmente – porque Sílvia Saes sabe incorporar e transformar os mais diversos elementos técnicos e temáticos que mistura em sua criativa feijoada, em que não faltam temperos e sabores. Tudo que é assimilado já vira outra coisa, por uma vocação de metamorfose, que nos prende à leitura do livro, à medida em que somos apresentados a sucessivas transfigurações verbais.  Em Brumadinho, por exemplo, o que poderia ser uma trivial peça de circunstância ganha contornos quase expressionistas, como acontece nas linhas: “buscam seus desaparecidos / em ronda cega ensandecida”, “marrom de matéria morta / o mundo em ondas de gosma / a boca conta um corpo a mais / oca vala aritmética”. Por fim, em Acometimentos, terceira e última parte do livro, o eu lírico aparece de modo mais enfático, sem no entanto ser narcísico; é uma fala ainda vaga, enigmática e misteriosa: “e como isso antecipasse o sinistro / estertor da serra / (rasgando os ares) / fincada no tronco de árvore / e eu sozinha fosse toda a matéria / e sucumbisse / à duração da serra / que não sentia a árvore / que não sentia a dor / (eu sentia por ela)”. Sílvia Saes é uma poeta consistente, inventiva, que domina o seu instrumento e foi a primeira leitura poética relevante que fiz no ano que se inicia.


São Paulo, Ano do Dragão de Madeira

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