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O LIVRO É UMA CASA DE VIDRO

Por Ademir Demarchi


Em Sob a sombra da Tabacaria (Florianópolis: Liquidificador, 2015), Viegas Fernandes da Costa sinaliza que “escrever é esquizofrenia” (assim como, depreende-se, publicar uma miscelânea, como essa) apontamento que pode ser uma forma de iluminação do que seria sua experiência, expressa nesse livro mesmo, ao reunir disjunções textuais com tal constatação sintomática que se relaciona aleatoriamente com registros de estranhezas, como a palavra “azimute” ou um estado metafísico confinante: “Um dia encontrei a poesia. Desde então andamos de mãos dadas, ela e eu, num desamparo de dar dó”, que, por sua vez, noutra correspondência, se vê no espelho de uma sentença: “O homem que mora no farol está sempre sozinho”.


Em consonância, publicar reverbera também outro apontamento no livro, feito por Walter Benjamin, sobre o surrealismo: “Viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por excelência”, assim o livro acaba por ser ele próprio o lugar perfeito da transparência na medida mesma da fala, que desnuda. Não se espere, pois, integridade de um pensamento esquizofrênico: “Ornitorrincos não deveriam discutir Kant. Ornitorrincos deveriam discutir poesia. (...) Ornitorrinco por muito tempo acreditava que para haver oração, havia de se ter Deus. Porém um gramático lhe explicou que para haver oração, há de se ter verbo. Entre verbo e Deus, Ornitorrinco escolheu o ponto de exclamação!”.


Eis que o tempo passa, a casa de vidro cai e o “eu poético” se pega em meio à barbárie e à pandemia, transcritas em nudez primal em Coliseu tropical (Curitiba: Kotter, 2021), com a constatação da necropolítica (“que importa a morte do pobre?”), que tem seu teatro no campo, “nosso coliseu tropical: tombam índios, camponeses, negros, gente pobre”. Como uma metralha, o morticínio vai sendo elencado como prática regular do Estado, com rememorações de Antônio Conselheiro, dos cangaceiros decapitados no Nordeste, dos desterrados do Contestado, dos índios eliminados na colonização, dos morticínios de civis no Rio de Janeiro, casos de linchamentos e de violência urbana, do recente golpe de Estado e até do massacre colonial no Congo, tudo como uma zumbilatria (num buraco, “Hoje, somos nós que cá estamos, e nossos mortos levamos lá para cima”) em meio a pesadelos, destruições, desumanização.


A certa altura do livro esse “eu poético” chocado que patina no rio de sangue derramado, extenuado, tenta se salvar com algum lirismo em que se ressalta aquela esquizofrenia sugerida, porém a tentativa parece ganhar um tom sépia nesse cenário, fechado com o texto lapidar: “afinal/ a peste dorme, apenas/ até despertar, chacoalhada/ no abismo da História”.


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