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OPUS 10: ENSAIO DESENTRANHADO: ANÁLISE COM POESIA

Por Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano*


Escrita por Rafael Fava Belúzio, a plaquete Opus 10: ensaio desentranhado, cujo design é assinado por Flávio Vignoli, da Tipografia do Zé, é uma homenagem à poesia de Manuel Bandeira e chama a atenção de saída pelos aspectos físicos da composição: seu estilo artesanal e sóbrio, a costura manual na lombada, os papéis especiais e o texto composto com tipos de caixa conferem ao livro uma aparência retrô que remete às páginas dos jornais de onde, no passado, Bandeira poderia ter retirado um ou mais poemas. A publicação conta com uma tiragem numerada e assinada de 250 exemplares.


Talvez o que mais cause estranhamento, à primeira vista, seja a forma que Belúzio escolheu para ensaiar um pensamento sobre a obra de Bandeira, uma vez que, sem perder o teor ensaístico, Opus 10 é, de fato, uma pequena antologia poética. Sem contar com uma única frase que possa ser propriamente atribuída ao autor da plaquete, o ensaio se constrói como uma costura de fragmentos de poemas e crônicas de Bandeira, provenientes dos livros Andorinha, andorinha; Gonçalves Dias; Flauta de papel; Crônicas inéditas 2; Itinerário de Pasárgada; Crônicas da Província do Brasil; e Belo belo, aos quais se adicionam as epígrafes pinçadas de Michel de Montaigne, Friedrich Schiller, Davi Arrigucci Jr. e Antonio Candido (além do próprio Bandeira), com o que Belúzio nos ajuda a nos orientarmos em sua leitura.


Fazendo uso desse recurso, o ensaísta, que também organizou Sou poeta menor, perdoai: Manuel Bandeira pela crítica contemporânea, do qual Opus 10 faz parte, mantém próxima a presença do poeta ao qual seu texto se dirige, deixando em suspenso a ideia da morte do autor, de Roland Barthes. Afinal, a forma adotada propicia algo como uma leitura guiada do que o próprio poeta nos permite ler em seus escritos, e que evidencia uma intencionalidade ou consciência poético-crítica da parte de Bandeira, como Belúzio explica, em Sou poeta menor, perdoai: “Em ‘Opus 10’, procuro desentranhar um ensaio – poemas menores? – a partir de prosas e versos do inventor de Pasárgada, buscando, entre mais aspectos, expor autoconsciências críticas” (BELÚZIO, 2023b, p. 14).


Não por acaso, o título do ensaio de Belúzio faz referência direta à obra do poeta que homenageia, que publicou pela primeira vez em 1952 seu Opus 10. Mas não só: também o subtítulo toma de empréstimo a Bandeira, do qual o “Poema desentranhado”, que abre o livro de Belúzio (após as epígrafes iniciais), constitui o provável intertexto de base para o epíteto “ensaio desentranhado”. Assim, Opus 10: ensaio desentranhado é o resultado do que Belúzio extrai das entranhas dos poemas de Bandeira; nele, ensaísta e poeta caminham juntos, produzindo uma curadoria que impulsiona novas leituras.


A poesia de Bandeira, portanto, nos é apresentada por Belúzio em seu ensaio como se trouxesse em si o ensaio a ser desentranhado, o que o ensaísta faz não a partir de novas afirmações sobre ela, mas simplesmente deslocando os fragmentos de seu contexto original e colocando-os em diálogo (entre si e com os outros autores já mencionados). Tal procedimento, se não se presta a dar explicações explícitas, convida ao esforço de compreender o olhar do curador por meio da interpretação daquilo que subjaz ao texto em latência – o que se escuta de uma enunciação para além do enunciado –, e que ganha contorno por meio das sobreposições, repetições, recortes e encadeamentos, que evidenciam a criação de um percurso e de um enquadre temático e, com isso, possibilitam um novo saber sobre a poética de Bandeira, a construir.


Em termos de movimento, o ensaio-antologia de Belúzio pode ser compreendido como um itinerário que 1. parte de uma introdução (ou prefácio) composta de três epígrafes relativas ao gesto do ensaio, 2. passa por um desenvolvimento por meio dos fragmentos que destacam temas ligados a uma ideia de hibridismo ou de contradição, e 3. encerra com uma conclusão (ou posfácio) em que os três fragmentos finais servem à apologia do texto, dando ciência de que o autor reconhece a brevidade e a natureza de “impressão fugidia” que caracterizam o ensaio como a pintura da passagem a que a epígrafe de Montaigne, que abre Opus 10…, alude.


Já em relação ao recorte temático, os temas que sobressaem são o pensamento sobre a poesia, o entrecruzamento das figuras do poeta, do ensaísta e do cronista, e as coexistências antitéticas. Quanto à metapoética, os fragmentos curados iluminam uma visão prosaica de Bandeira sobre a poesia ao destacar versos como “a poesia que há escondida / nas coisas (...)”, “A poesia está em tudo”, “A poesia é feita de pequeninos Nadas”, que dizem, por exemplo, da presença da poesia no espaço comum – não necessariamente contida no livro ou no sublime – e da sua falta de essência, ou, se assim se quiser, de sua essência polimórfica. Já quanto à mistura de papéis na criação literária, fragmentos como os de “O sal da heresia” nos relatam o duplo estatuto de Bandeira, que traz “o cronista no poeta” e “o poeta no cronista”, enquanto a epígrafe de Andorinha, andorinha, da abertura do livro de Belúzio, nos apresenta um poema que contém em si a intenção de ensaio – “Assim, por exemplo (é um ensaio).” –, e que, portanto, faz do poeta também um ensaísta. Fragmentos como esses nos fazem enxergar em Bandeira o projeto de uma poética fluida, que transita por entre espaços fronteiriços sem se deixar circunscrever no espaço institucional a ela delimitado e que faz pouco caso das classificações distintivas no que diz respeito aos gêneros textuais e às categorias autorais.


O tema que sobressai, no entanto, é o da existência simultânea de formas contraditórias, que chamei há pouco de “coexistências antitéticas,” referindo-me à construção de pares oposicionais como a eternidade e a circunstância, a modernidade e o romantismo, a tragédia e a comédia, o lógico e o disparatado, a simplicidade e o Sublime, o velho e o novo na estética, o bicho e o homem numa só criatura… É a presença desses pares o que Belúzio descreve, em “Sou poeta menor, perdoai”, ao dizer da poesia de Bandeira que ela traz “no simples, o complexo; no baixo, o elevado; no cotidiano, o Sublime; na maçã, o amor divino; no corpo nu, o céu; na noite de São João, profundamente; na flauta de papel, a Estrela da vida inteira” (BELÚZIO, 2023b, p. 12). Configura-se, assim, uma poética da contradição, da simultaneidade, da coexistência, que não se prende em definitivo à tradição ou à ruptura, e que é melhor descrita – de empréstimo à epígrafe tomada de Candido – pelo número três que pelo dois: nem isso, nem aquilo: outra coisa.

Por essas escolhas, podemos entender Opus 10…, de Belúzio, como um ensaio experimental, uma tentativa (o “ensaio” é, em sentido originário, uma “tentativa”) de aproximar imagens, temas e impressões para criar um ensaio apropriativo, que se constitui a partir dos recursos de seleção e de combinação e que, mais que apenas compor uma curadoria, nos mostram uma perspectiva de leitura do ensaísta em relação a Manuel Bandeira e à sua obra. Com seu ensaio, Belúzio coloca em questão a “minoridade” do poeta e, apropriando-se de sua poesia, a mantém viva, provendo-a de novo frescor. Concluo pontuando que empreitadas como essas são fundamentais para manter vivas as obras de escritores que constituem o nosso cânone, pois é apropriando-se deles, trazendo-os para a conversa e colocando-os em circulação que se renova sua potência mais imprescindível, que, como ensina um dos mais importantes críticos do século XX, Frank Kermode (2021), é a de dar prazer.


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Referências


ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BANDEIRA, Manuel. Opus 10. In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

BELÚZIO, Rafael Fava. Opus 10: ensaio desentranhado. Belo Horizonte: Tipografia do Zé, 2023a.

BELÚZIO, Rafael Fava (Org.). Sou poeta menor, perdoai: Manuel Bandeira pela crítica contemporânea. São Paulo: Alameda, 2023b.

KERMODE, Frank. Prazer e mudança: a estética do cânone. Trad. Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

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* Isadora Saraiva Vianna de Resende Urbano é doutoranda em Estudos Literários na UFMG, com pesquisa na área de Teoria da Literatura e Literatura Comparada, além de professora, escritora e psicanalista em formação. Possui graduação e mestrado também pela Faculdade de Letras da UFMG.

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