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Os mistérios de “adminimistério”

  • Foto do escritor: jornalbanquete
    jornalbanquete
  • 31 de ago. de 2024
  • 4 min de leitura

Por Ricardo Silvestrin


Quando se pensa na poesia de Paulo Leminski talvez não venha à cabeça a ideia de métrica. Mais especificamente de métrica regular. No entanto, contribui para o tom “chic parnasiano” que ele afirmou certa vez ter buscado nos poemas de Distraídos venceremos o uso de metros, se não regulares, com número de sílabas tendendo a uma regularidade.


São versos, no geral, não díspares no tamanho. Um exemplo (LEMINSKI, 2013, p. 178):

 

Vim pelo caminho difícil, (8)

a linha que nunca termina, (8)

a linha bate na pedra, (7)

a palavra quebra uma esquina, (8)

mínima linha vazia, (7)

a linha, uma vida inteira, (8)

palavra, palavra minha. (7)

 

Concorre para a ideia de regularidade a posição dos acentos. No primeiro verso, temos acentos nas sílabas 1, 5, 8. No segundo, 2, 5, 8. Terceiro, 2, 4, 7. Quarto, 3, 5, 8. Quinto, 1, 4, 7. Sexto, 2, 6, 8. E, no sétimo verso, 2, 5, 7.


Como vimos, e ouvimos, há uma predominância de acentos nas sílabas 5 e 8. Quando os versos são de sete sílabas métricas, os acentos se deslocam, mas mantêm esse esquema de três marcações, no início, no meio e na última sílaba.


A musicalidade vem pelas rimas tanto externas quanto internas: termina/esquina, linha/minha, pedra/quebra. Também há o predomínio de sons em i: vim, caminho, difícil, linha, termina, esquina, mínima, vida, e nasais em vim, caminho, linha, minha.


A onda sonora do poema recebe também umas bordoadas do tambor de bate, com sua percussão que ecoa em pedra. O pe de pedra batuca e se quebra no erre do dra.  A quebra ecoa verso abaixo, em “a palavra quebra uma esquina”.


Essa linha que nunca termina, que às vezes fica mínima e vazia, mas que é uma vida inteira, tem, no poema o som vim no início e min (de minha) no final. Começa e segue soando da mesma maneira, como um mantra.


Em outro poema do mesmo livro, “Adminimistério” (1), todos os versos são de sete sílabas, a chamada redondilha maior. Localizei um possível texto base para essa escolha métrica. Trata-se da canção “Primavera”, de Cassiano, Tim Maia e Silvio Roberto.


É claro que não estou afirmando que essa canção foi usada pelo Leminski como base do seu poema. Pra saber se foi, só se pudéssemos perguntar para ele. Importa aqui a localização de uma semelhança sonora sobretudo no primeiro verso de um e de outro texto:


“Quando o inverno chegar” (“Primavera”)

“Quando o mistério chegar” (“Adminimistério”)

 

Ambos são versos de sete sílabas métricas. Por apenas uma palavra trocada, os dois se diferenciam. Um aguardo o inverno chegar. O outro, o mistério. Mas ambos chegam cada um instaurando uma sequência de quatro versos com metro regular, de redondilha maior:


Aqui, a canção do trio, eternizada na voz de Tim Maia:


Quando o inverno chegar (7)

Eu quero estar junto a ti (7)

Pode o outono voltar (7)

Eu quero estar junto a ti (7)

 

E aqui, o poema do Leminski:

 

Quando o mistério chegar, (7)

já vai me encontrar dormindo, (7)

metade dando pro sábado, (7)

outra metade, domingo. (7)

 

Tente cantar o poema do Leminski, nessa estrofe, com a melodia de “Primavera”. Encaixa. O que nos leva às equivalências dos acentos de um de outro:

 

QUANdooinVERnocheGAR

QUANdoomisTÉriocheGAR

 

Acentos nas sílabas 2, 4 e 7.


Essa métrica segue poema abaixo, sempre com versos de sete sílabas. Como se a regularidade ditada pela melodia da primeira estrofe da canção “Primavera” seguisse e guiasse a regularidade métrica do poema “Adminimistério”. Diferentemente de outros poemas, como o que vimos antes, em que a métrica tem versos com sílabas de números próximos, mas não necessariamente iguais do início ao fim, aqui a regularidade não se desfaz.


O mistério aumenta, “Não haja som nem silêncio/quando o mistério aumentar”. Volta, assim como na voz do Tim Maia “Pode o outono voltar”, Leminski fala: “Quando o mistério voltar,/meu sono esteja tão solto,/nem haja susto no mundo/que possa me sustentar”. Até que, no final, pousam mariposas e mosquitos “no texto incerto” e se aventa a hipótese de eles poderem ter descoberto “parentesco com as letras do alfabeto”.


Assim, esse texto que soava como canção no início se fixa ao final como desenho. Leminski, que acionava nossos ouvidos, para e nos lembra para usarmos também os olhos, como quem diz, “olha como um inseto parece uma letra”.


São minimistérios para se admirar nesse “Adiminimistério”, que soa em mono (só com o poema) e também em estéreo (num canal o poema do Leminski; no outro, canção com a voz de Tim Maia).


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* Ricardo Silvestrin é autor dos livros de poesia Viagem dos olhos, Quase eu, Palavra mágica, ex,Peri,mental, O menos vendido, Metal, Adversos, Typographo, Sobre o que, Carta aberta ao demônio e Irmão Robô. No haicai, lançou Bashô um santo em mim, Prêt-à-porter, Dinastia Mim. Na prosa, Play, contos, O videogame do rei, romance. Na literatura infantil, destacam-se Pequenas observações sobre a vida em outros planetas, É tudo invenção. Na música, como compositor e vocalista, lançou o álbum Silvestream. É mestre em literatura pela UFRGS com a dissertação Manuel Bandeira, um poeta na fenda. Recebeu por cinco vezes o prêmio Açorianos de Literatura e por uma vez o prêmio Ages. Foi finalista dos prêmios Portugal Telecom, Brasília e Candango. Foi editado em Montevidéu com Los Seres Trock, infantil, bilíngue de poesia, pela Topito, prêmio do Ministério da Cultura do Uruguai, e em Riveira, também no Uruguai, com Carrocería/Lataria, Abrelábios, edição bilíngue de poesia.


Referências

 

LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SANTOS Cassiano dos; MAIA Rodrigues Sebastião, ALOE ROCHAEL Silvio Roberto. Primavera. Fonte: LyricFind.

 

 

(1)   Adminimistério

 

   Quando o mistério chegar,

já vai me encontrar dormindo,

   metade dando pro sábado,

outra metade, domingo.

   Não haja som nem silêncio,

quando o mistério aumentar.

   Silêncio é coisa sem senso,

não cesso de observar.

   Mistério, algo que, penso,

mais tempo, menos lugar.

   Quando o mistério voltar,

meu sono esteja tão solto,

   nem haja susto no mundo

que possa me sustentar.

 

   Meia-noite, livro aberto.

Mariposas e mosquitos

   pousam no texto incerto.

Seria o branco da folha,

   luz que parece objeto?

Quem sabe o cheiro do preto,

   que cai ali como um resto?

Ou seria que os insetos

   descobriram parentesco

com as letras do alfabeto?

(LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 179)

 



 

 
 
 

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2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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