Por Paulo de Toledo
Lendo o livro Lagar de fala, de Júlio Machado (1975), lembrei imediatamente de outro poeta contemporâneo, e de quase a mesma idade de Júlio, o catarinense Dennis Radünz (1971).
Ambos os poetas evitam o verso-livre-quase-prosa praticado por boa parte dos poetas contemporâneos brasileiros. (Mas, como costumo dizer, 98,74% daqueles que usam verso livre são medianos ou ruins; e, por sua vez, 98,74% dos que usam formas regulares são medianos ou ruins; e, diga-se, 98,74% dos que usam “não-versos” são medianos ou ruins.) Como exemplo dessa semelhança entre eles, comparemos as duas primeiras estrofes de “Tempestade em corpo d’água” (de Lagar de fala, Ed. Urutau, 2022), de Júlio, e o poema “Casas noturnas (1)” (de Livro de Mercúrio, Ed. Letradágua, 2001), de Dennis:
Tempestade é pouco
se o que chamas de copo
abarca o corpo do outro.
O copo mesmo é pouco
se o que chamas de corpo
é barco solto no espaço.
***
a casa mora onde mora a noite
se nenhum rumo mais a mura
ou abre e fura a hora adentro
se a água mole a pedra aflora
e afora enfurna-se o relento
Como se pode observar, nos trechos citados há um trabalho meticuloso com a sonoridade dos poemas, com a criação de paronomásias, aliterações, assonâncias e toda a sorte de similaridades físicas (POuCO / COPO / CorPO (paronomásia); pOuco / cOrpo / Outro (assonância); tempestAde / chAma / abArca / bArco / espAço (assonância); aBARCa / BARCo (paronomásia); MORA / RUMO / MURA / FURA (paronomásia); AFlORA / AFORA (paronomásia); etc.).
Nos atrevemos a afirmar que Júlio poderia assinar o poema de Dennis e vice-versa. O que não quer dizer que não haja enormes diferenças entre ambos. Porém, o objetivo deste nosso texto não é fazer uma comparação entre esses dois talentosos poetas (algo que pode acontecer em outro momento), mas, sim, apresentar alguns comentários sobre o poema “Werther aos pivetes”, constante de Lagar de fala, aliás, o último poema do livro. Esses comentários têm como objetivo demonstrar que a elaboração rigorosa de similaridades físicas entre os elementos que compõem o poema, e que dão a ele organicidade estrutural, é a principal característica da poética de Júlio Machado em Lagar de fala.
Antes de iniciarmos nossas observações sobre “Werther aos pivetes”, vamos transcrevê-lo:
Vestidos de canivetes,
os pivetes do Catete
roubaram-me sem saber
Os sofrimentos de Werther.
Quis verter este espetáculo
(inédito, ao que parece)
em versos nédios capazes
de subverter o folguedo:
“Vede, ó musa dos guetos,
o inútil desse brinquedo,
desse engodo que é lançar
restos de Goethe ao esgoto.”
O que ouvi em resposta
(eco, revérbero seco)
veio-me em postas de riso
do beco em que me meti
e onde aprendi, por desplante:
nas furnas surdas do mundo,
não há cantiga nem verso
que o diabo não descante.
E eu, infante, me ri
por saber que neste instante
o diabo se diverte
lendo Werther aos pivetes.
Verifica-se a prevalência do sermo nobilis: a dicção elevada (“nédios”, engodo”, “revérbero”, furnas” etc.) contrasta ironicamente com o assunto “baixo” (pivetes assaltando um passante).
O poema é composto por seis estrofes de quatro versos, todos estes de sete sílabas, e esquemas rímico e rítmico irregulares.
A escolha pelo setissílabo pode ter sido motivada pela “cantiga” mencionada na quarta estrofe, posto que a cantiga é uma forma poética em que são utilizadas as redondilhas maiores (7 sílabas) e menores (5 sílabas).
No poema, lê-se a narrativa de um assalto: “pivetes do Catete”, ao roubarem o poeta-narrador, acabam por levar o romance Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Johann Wolfgang von Goethe. No poema, o nome da obra foi reduzido para caber no metro de 7 sílabas. Como se sabe, essa obra goetheana causou enorme furor quando da sua publicação, provocando, inclusive, uma onda de suicídios entre os jovens de toda a Europa, o que, dois séculos depois, recebeu o nome de “Efeito Werther”.
Passaremos, agora, a comentar estrofe por estrofe do poema, nos detendo especificamente em seus aspectos formais.
Primeira estrofe:
Vestidos de canivetes,
os pivetes do Catete
roubaram-me sem saber
Os sofrimentos de Werther.
O esquema rímico é A/B/B/A. As rimas são toantes: canivEtes – wErther; catEte – sabEr.
Nos primeiro e segundo versos, há uma sequência de aliterações em labiodentais e linguodentais: VesTiDos – De – caniVeTes – piVeTes – Do – caTeTe.
No verso 3, temos uma aliteração com bilabiais: “rouBaram-Me sem saBer”.
Verifica-se, nos versos 3 e 4, uma sequência de sibilantes: Sem Saber – oS SofrimentoS.
Segunda estrofe:
Quis verter este espetáculo
(inédito, ao que parece)
em versos nédios capazes
de subverter o folguedo:
O esquema rímico é A/B/A/C e, mais uma vez, ocorre a rima toante: espetÁculo – capAzes.
No primeiro verso, temos o vocábulo “verter”, semelhante gráfica e sonoramente a “Werther”.
No segundo verso, há a ocorrência de “Es” abertos nas sílabas tônicas: “(inÉdito, ao que parEce)”.
Algo semelhante acontece no terceiro verso: “em vErsos nÉdios capazes”.
No verso 4, temos o verbo “subVERTER”, outra vez formando uma paronomásia com “Werther”.
Terceira estrofe:
“Vede, ó musa dos guetos,
o inútil desse brinquedo,
desse engodo que é lançar
restos de Goethe ao esgoto.”
O esquema rímico é A/A/B/C, também com rima toante: guEtos – brinquEdo.
No primeiro verso, há a ocorrência de “Es” fechados nas tônicas: “vEde, ó musa dos guEtos”.
No quarto verso, observa-se uma sequência de labiodentais: “resTos De goeThe ao esgoTo”.
Em toda a estrofe, há vocábulos fisicamente semelhantes: GUETOs – brinQUEDO – enGODO – GOETHE – esGOTO.
Quarta estrofe:
O que ouvi em resposta
(eco, revérbero seco)
veio-me em postas de riso
do beco em que me meti
O esquema rímico é A/B/C/C e a rima é toante: rIso – metI.
No segundo verso, temos uma sequência de assonâncias em “Es” abertos e fechados: “(Eco, rEvÉrbEro sEco)”.
Os versos 1 e 3 também apresentam semelhanças grafofônicas: “ouVI EM resPOSTA” – “VeIo-ME EM POSTAs”.
Encontramos em toda a estrofe, assim como ocorre nas anteriores, mais paronomásias: POSTAs – resPOSTA; ECO – sECO – bECO.
Quinta estrofe:
e onde aprendi, por desplante:
nas furnas surdas do mundo,
não há cantiga nem verso
que o diabo não descante.
O esquema rímico é A/B/C/A e rima consoante: desplANTE – descANTE.
No primeiro verso, “aprendI” ecoa “metI” do verso anterior, quase formando uma rima interna. Nesse mesmo verso, também ocorre uma sequência de linguodentais: “e onDe aprenDi, por DesplanTe”.
Já no segundo verso, observamos uma sequência de “Us”: fUrnas – sUrdas – mUndo.
Os versos 1 e 3 têm acento nas quartas sílabas, e ambas na vogal “i”: “eon / dea / pren / dI”; “não / há /can / tI”.
Sexta estrofe:
E eu, infante, me ri
por saber que neste instante
o diabo se diverte
lendo Werther aos pivetes.
O esquema rímico é A/B/C/C e a rima é toante: divErte – pivEtes.
Nessa estrofe, os vocábulos “infANTE” e “instANTE” ecoam “desplANTE” e “descANTE” da estrofe anterior.
No verso 3, “diVERTE” retoma, de novo, as paronomásias: WERTHER – VERTER – subVERTER. Neste mesmo verso, temos também: DIabo – DIverte; e as linguodentais: “o Diabo se DiverTe”.
É claro que um poema não é feito apenas da criação de similaridades físicas entre os seus elementos constituintes. O que tentamos fazer foi chamar a atenção para a criação de uma organicidade estrutural proporcionada exatamente por essas semelhanças grafofônicas.
Algumas observações finais.
Catete é um bairro do Rio de Janeiro em que fica localizado o Palácio do Catete, antiga sede da presidência da República, onde, por sua vez, Getúlio Vargas se suicidou. Assim como Werther, protagonista da obra goetheana.
O diabo que aparece no poema em estudo é uma evidente referência ao Fausto (1808), de Goethe (aliás, em Lagar de fala, o poema anterior a “Werther aos pivetes” se chama “Urfaust”, uma alusão à primeira versão do Fausto escrita pelo autor alemão). Porém, trata-se claramente de uma paródia do diabo faustiano, posto que o diabo de Júlio Machado não vive na civilizada Alemanha, mas entre pivetes de rua, nas “furnas” e becos sombrios do Catete. (A sequência “furnas surdas do mundo”, com seus “Us” escuros, já sugere as trevas em que se desenrolam os fatos.)
É bastante irônico ver os “sofrimentos” de um romântico alemão (branco) do século XVIII sendo lidos por um diabo que “se diverte” (os pivetes riem, assim como o “infante” eu-lírico) a um grupo de meninos sem-teto (quase todos pretos, diriam Caê e Gil), isto é, que não têm direito a absolutamente nada, nem sequer a sonhar com um pacto, seja ele com Deus ou com o Diabo.
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