Por Ninfa Parreiras
E o que a brincadeira tem a ver com a poesia? Ao escrever versos, mexe-se e remexe-se com as palavras, com os sons, com os sentidos. E, ao ler ou escutar os versos, a criança se sente em um recreio.
“É a brincadeira e nada mais que está na origem de todos os hábitos. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se, devem ser inculcados no pequeno ser através de brincadeiras, acompanhados pelo ritmo de versos e canções. É da brincadeira que nasce o hábito, e mesmo em sua forma mais rígida o hábito conserva até o fim alguns resíduos da brincadeira. Os hábitos são formas petrificadas, irreconhecíveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror” (W. Benjamin, Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política, 1985, p. 253)
A poesia para as infâncias é a escrita que brinca com as palavras e resgata memórias de experiências de quem escreve e de quem lê. A musicalidade e o ritmo dos versos embalam os bebês e as crianças. Das cantigas de ninar às de roda e aos versos brincantes das parlendas e trava-línguas à poesia dos livros.
Ler com e para as crianças, repetir, brincar com o som das palavras, fazer movimentos labiais que chamem a atenção dos pequenos: é assim que apresentamos os poemas às crianças, com uma leitura entusiasmada e despretensiosa. A poesia não é para ser entendidanem interpretada. É para ser sentida e vivida. Vamos conferir algumas novidades de livros infantis com poemas:
O cavaleiro da lua ((Rio de Janeiro: Reco-Reco, 2024), de Luiz Antonio Simas, com ilustrações de Camilo Martins, apresenta a história de São Jorge, em oitavas, estrofes de oito versos. Surgida no final do século XII, início do XIV, a oitava foi muito utilizada em poemas épicos e aqui é resgatada em uma homenagem ao Santo Guerreiro e à Lua. A obra apresenta inicialmente uma parte dedicada ao encantamento do menino-protagonista com os mistérios da Lua e do Santo. São 8 estrofes rimadas.
Na segunda parte, há 5 blocos de textos apresentados em prosa. O autor fala das fases da lua, em uma linguagem informal e fluente:
“Toda noite em que o guerreiro
Aponta a sua lança
Com elmo de cavaleiro
Pra proteger as crianças
Do céu que prateia a rua
A maré brinca na areia
Ora rasa, ora cheia
Dançando também com a lua” (p. 14)
O olhar da infância, do menino-personagem, prevalece tanto na linguagem do texto quanto na linguagem visual. Ilustrações de Camilo Martins imprimem movimento, como as fases da lua e as aventuras do Guerreiro na imaginação de todos que apreciam o céu.
Os tipos utilizados no texto lembram os dos livretos de cordel. Uma costura silenciosa ata os fios das palavras aos fios das imagens. Os tons e os contrastes escolhidos deixam um efeito elegante e lúdico.
A poética, a arte, a crença popular e a astronomia caminham juntas, mostram a força do contemplar e do imaginário das infâncias.
Se tudo fosse parente ( Jndira, SP: Ciranda na Escola, 2023), de Marta Lagarta, com ilustrações de Oscar Reinstein, é um livro de poesia, com o uso de nonsenses e de muitas brincadeiras com as palavras e os sentidos. A autora apresenta diversos parentescos entre pessoas, personagens e coisas. Para isso, utiliza uma livre associação de ideias, rimas e onomatopeias. O resultado é uma poesia brincante e descontraída. Vamos conferir um trecho:
“Se oceano fosse avô,
Seria avô da pirataria.
Ou, quem sabe, avô das baleias,
Baleias piratas: eu apostaria” (p. 18)
O humor da linguagem escrita é retomado nas imagens de Oscar Reinstein. O artista dá realce a detalhes de identidades criadas para divertir os leitores. Afinal, há parentes assim e assado!
A obra apresenta um jeito curioso de familiarizar as crianças com parentescos dos seres e da natureza. Afinal, tudo faz parte de uma grande rede conectada por afinidades e também por conflitos.
A escolha de letra em bastão facilita a leitura dos iniciantes no universo da escrita. A linguagem poética, com musicalidades e surpresas, vem mostrar que entre as palavras há famílias de sons, de rimas, de sentidos. Uma boa pedida para as crianças pequenas mergulharem na riqueza da língua!
Já Balada do Morro da Alegria (Belo Horizonte: Lê, 2024), de Raimundo Carvalho, com ilustrações de Demóstenes Vargas, é um livro que une arte bordada e escrita. O bioma Cerrado chega em cores, sons, volumes, faltas, texturas, ritmos.
Em estrofes de 4 versos, flui uma natureza visível, da vizinhança; e outra do que está além-montanha, além-matas. A literatura sempre está para além do que está escrito e aqui esse é um propósito da obra.
A natureza está conectada com os humanos, com a arte e com os afetos. Tudo que é ser vivo se liga a outros seres:
“Tudo que é vivo se entoca,
Esperando que ela passe.
O mato se faz de manto
Com as cores do arco-íris.” (p. 17)
O livro é um convite para seguir na musicalidade dos versos e nas imagens bordadas. Em outro trecho, notamos a intertextualidade utilizada pelo autor:
“Bem atrás daquele morro,
Passa boi, passa boiada.
Em cima moram estrelas,
Lua, nuvens e galáxias.” (p. 15)
Nota-se uma conversa de textos, com a canção “Em cima daquele Morro”, de Arnaud Rodrigues. Essa conversa incentiva o leitor a descobrir outros registros (canções, textos...).
Nas três obras aqui comentadas, a poesia marca presença com a força das imagens, com a sonoridade e com o fluxo de associações de pensamentos. Como bem disse Ezra Pound, a poesia se manifesta por fanopeias, melopeias e logopeias. A poesia para as crianças se destina a todas as idades.
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Ninfa Parreiras é graduada em Letras e Psicologia (PUC-Rio), tendo feito cursos de especialização em literatura infantil e juvenil, e é mestre em Literatura Comparada, pela USP. Trabalha como professora de literatura e de criação literária, consultora literária, editora de livros, produtora cultural, escritora e psicanalista. Tem livros publicados para públicos de diferentes idades, em prosa e em poesia, além de ensaios sobre literatura e psicanálise. Algumas de suas obras foram laureadas com o Selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; 30 melhores livros do Ano da Revista Crescer, seleção para o Catálogo da Feira do Livro de Bolonha, Itália. Sua obra Donana e Titonho, finalista do Prêmio Jabuti, foi selecionada para o Catálogo White Ravens da Biblioteca da Juventude de Munique, Alemanha (100 melhores obras de 2019.
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