Por Jardel Dias Cavalcanti
“e começo aqui...” Não se pode pensar Galáxias, de Haroldo de Campos, sem antes ter noção dos espaços culturais frequentados por ele. O poeta, tradutor e crítico viveu sob o macrocosmos das vanguardas e de todos os experimentalismos artísticos provenientes dela, seja a vanguarda construtiva russa, o Futurismo, o Dadaísmo, Bauhaus, Pop Art – e todos os derivados dessas correntes –, e também bebeu, em retrocesso temporal, em fontes antigas, desde que ampliassem seu interesse pelo novo, como seu amor pelo Barroco, Dante e Mallarmé, para lembrar alguns de seus interesses. Teorias da linguagem, semiótica, filosofia, tudo cabia na mente de Haroldo de Campos, que as transformava em criações. E, evidentemente, não se pode pensar Galáxias sem a existência da devoção de Haroldo de Campos por James Joyce. Podemos até nos arriscar a dizer que, depois de Joyce (o que fazer depois de Joyce?), só Galáxias respondeu à destruição total do sentido tradicional de literatura.
Não bastasse tudo isso, a maior paixão de Haroldo de Campos (talvez maior que produzir poesia), foi a tradução. Ampliando sua mente (só se amplia a mente com a ampliação do vocabulário), traduzindo em várias línguas, e não traduzindo no sentido tradicional do termo, mas experimentando a invenção na tradução, o poeta mergulhou na recriação dos maiores poetas do mundo, re-inscrevendo-os na língua portuguesa. Dialogando com o conceito de tradução de Walter Benjamin, Haroldo aproxima-se da sua ideia de tradução como transpoetização. “Libertar na sua própria aquela língua pura, que está desterrada na língua estranha; liberar, através da transpoetização, aquela língua que está cativa na obra, eis a tarefa do tradutor”, dizia Benjamin. E foram tantas as línguas e tantos os universos da arte por ele frequentados que só mesmo uma obra como Galáxias para dar conta dos tensionamentos criativos que o invadiam.
Galáxias é como o universo, infinito, em constante expansão, não podendo ser apreciado no sentido tradicional da literatura. Não há começo, não há meio, não há fim. O “e começo aqui...” é uma porta de entrada, no entanto, sem saída – uma vez dentro do labirinto, é se perder, pois sem se perder não se encontra o novo. Quando se entra na obra, quando o leitor se emaranha em suas teias brilhantes, melhor que seja pelas vielas que se vão abrindo a cada palavra que, copulando umas com as outras num festim vocábulo-orgiástico, germina sentidos inesperados.
A ideia de “obra aberta”, concebida tanto por Haroldo de Campos como por Umberto Eco, é uma chave mestra para a compreensão (e fruição) de Galáxias. “Uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original” (A obra aberta). A gestação da obra de Haroldo de Campos tem sua base nessa ideia. Sabia ele que a multiplicação de significados no seu trabalho poético se daria na medida em que se expandisse, como se o universo fosse o significado das conjunções vocabulares.
Ao adotar procedimentos joyceanos para sua Galáxias, como o uso das palavras-valise, Haroldo de Campos amplia o sentido de sua obra, não a deixando cair no terreno morto de uma leitura única e não renovável. O uso das palavras-valise serve para desnortear o sentido original das palavras, inventar uma nova língua, “trapacear com a linguagem” (Barthes), impor-se, como fez Joyce em Finnegans wake, contra “a transmissão clara de um significado preexistente, autossuficiente e inequívoco” e contra “os processos claros e lineares do pensamento prático e racional. A palavra-valise nega que as palavras possam ter, numa dada ocasião, um único significado; e como os vários recursos de assonância e rima, nega que os padrões múltiplos de semelhança, ao nível do significante, sejam desprovidos de significado. [...] A palavra-valise não seria outra coisa senão um aspecto definidor da própria língua, porque a palavra-valise deriva de fato de que os mesmos segmentos (letras, fonemas, sílabas) podem se combinar de modos diferentes”, conforme assinala Derek Attridge no ensaio "Desfazendo as palavras-valise, ou Quem tem medo de Finnegans wake?" (riverrun – Ensaios sobre James Joyce, organizado por Arthur Nestrovski).
A exuberância vocabular de Galáxias é surpreendente. É como se as palavras de um dicionário inteiro estivessem dentro da cabeça do poeta e que, em revolta contra os seus significados tradicionais, essas mesmas palavras resolvessem buscar novos sentidos se fundindo numa espécie de sinfonia com sobreposição polifônica de vozes (como Bach e o punctos contra puntum) para, enfim, destruir a estrutura do dicionário.
Não seria necessário Haroldo de Campos gravar o CD Isto não é uma viagem, com fragmentos de Galáxias lidos por ele, para percebermos o valor que a sonoridade tem na obra. Mesmo uma leitura silenciosa chama nosso ouvido à participação na leitura. As assonâncias, rimas, o entrechocar-se de palavras que acabam se fundindo, produzem ruídos no silêncio de nossa mente (John Cage), como se constelações de corpos celestes formados por palavras-estrelas, palavras-cometas, se entre-relacionassem no vasto infinito e estivessem presentes à grande sinfonia galáctica do poeta. Galáxias é “um livro para ser lido em voz alta”, disse o poeta. No entanto, a sua leitura silenciosa também produz o som que reverbera em nossa caixa craniana. O que não nos impede, e até que se exija do leitor, também uma leitura em voz alta, para que aprecie melhor ainda o som da infinita galáxia literária de Haroldo de Campos.
A vertigem do texto haroldiano, a expansão da linguagem, a qualidade subversiva dos sentidos, o aproxima do barroco. Longe de qualquer moderação, equilíbrio ou lógica, tal como no Barroco, Galáxias apela para o movimento contínuo e a fantasia, não querendo nos seduzir via intelecto, mas através dos sentidos. Para finalizar, cito uma passagem de Galáxias que exemplifica tudo o que disse.
[...] agora a cena aclara marilyn marilinda amarílis de marilyn em vermelho e preto e louro e rodomel e crinipúbis agora abrebraços morcegopomba de alas vampirescas numa coisa de ouro tão louro que o v dos seios enforca uma raça de escuro e meias nylon mãosjuntas depois sobre um joelho que encompassa outro joelho e o vermelho arredonda um pudormedo sob o lourofote dos cabelo pavilhão-redoma do rosto em arrufo-sorriso ou seria já rictus mas é riso ainda na vênusconcha da poltrona de espuma esta terceira Marilyn é amarga e diz amaro amaríssimo seu perfil de corte duro sob o amarelo elmo do penteado está sentada nua e meio aberta post ludium vel post coitum meio aberta manuseada tale ou publiolhada multitacteada aberta fornicada ao multicoito que flui como uma cola de esperma corrosivo ela sentada se respalda num coto de antebraço os seios são glândulas mamárias e pesam como laranjas de cera no outro braço uma alça despenca a mortalha do vestido poderia estar assim a cavalo de um bidê fúnebre coxas em garfo e o brasonado ventre crinifulvo porém de tudo e mais de tudo um cansaço um cansaço um cansaço e uma fúria de cuspo frustro e saliva ensarrilhada aqui no livro [...]
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* Jardel Dias Cavalcanti é doutor em História da Arte pela Unicamp e professor de História da Arte na Universidade Estadual de Londrina. Autor de Volúpia e sensibilidade: escritos sobre arte (Ed. Scriptum), também é editor da Galileu Edições.
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