Por Claudio Daniel
A presença do índio na literatura brasileira é registrada desde a Carta de Pero Vaz de Caminha (“homees pardos todos nus sem nhuua cousa que lhes cobrisse suas vergonhas”, “moças asy nuas que nom pareçiam mal”), primeiro documento literário produzido nesta Terra de Santa Cruz. No século XVI, está inclusa no vocabulário do poeta baiano Gregório de Matos, em sua inventiva miscigenação de termos indígenas (caramuru, paiaiá, cobepá, aricobé), africanos, latinos e lusitanos, e também na temática de cartas e sermões do padre Antônio Vieira, como o Sermão da Sexagésima ou o Sermão da Epifania, mas é a partir do Romantismo que o índio será protagonista dos poemas de Gonçalves Dias, como I Juca Pirama, e dos romances de José de Alencar, como Iracema e O guarani, ainda que numa feição europeizada, que Oswald de Andrade chamaria, no Manifesto Pau-Brasil, de “índio de lata de biscoito”. Apesar da retórica pomposa e idealizante, esses autores incorporaram no léxico português palavras como maracá, cauim, piaga e muçurana, bem como as referências a armas, adereços, instrumentos musicais e outros objetos utilizados no cotidiano pelos índios. O primeiro poeta a tratar do tema indígena com enfoque crítico foi o maranhense Joaquim de Sousândrade, autor do poema épico O guesa errante, que denuncia os males do colonialismo português, da exploração da mão-de-obra escrava e da catequização jesuíta, responsáveis por um processo de genocídio humano e cultural que persiste até os dias atuais. Sousândrade, o mais moderno de nossos românticos, na seção do Guesa intitulada O inferno de Wall Street, no Canto X, irá ainda além, observando a hegemonia do capitalismo financeiro e suas consequências para os povos de países sob o jugo do grande capital internacional (“Desde Christie, a Grande Bretanha / Se mede co’o Império que herdei... / Rainha-Imperatriz...! / = Os Brasis / Vos farão Imperador-Rei...”). No episódio do Canto II intitulado Tatuturema, palavra que designa um festim oferecido a Jurupari, na região do Alto Solimões, na Amazônia, Sousândrade escreve: “Missionário barbado / que vens lá da missão / Tu não vais à taberna / que interna / tens em teu coração”. A denúncia da hipocrisia religiosa e a exaltação da sensualidade indígena estará presente, sobretudo, em outro poeta de nosso Romantismo, Bernardo Guimarães, autor de peças de irreverente erotismo como O elixir do pajé, onde lemos: “E ao som das inúbias, / ao som do boré /, na taba ou na brenha, / deitado ou de pé, / no macho ou na fêmea / de noite ou de dia, fodendo se via / o velho pajé!”. No poema de Guimarães, o índio é retratado não como um Siegfried amazonense, ao estilo d’Os Timbiras, mas como o puro pagão, sensual e feiticeiro, tão estranhamente outro, em contraste com o pundonor lusitano. Este poema, assim como A origem do mênstruo, também de Guimarães, foi recuperado na segunda metade do século XX pelo poeta mineiro Sebastião Nunes, que resgatou do esquecimento essa lírica erótico-satírica, que ele editou em álbum primoroso pelo selo Edições Dubolso.
Será a partir do Modernismo, porém, em especial com Mário e Oswald de Andrade e Raul Bopp, que nossa literatura irá não apenas resgatar o vocabulário, costumes, religião, mitologia, folclore e manifestações artísticas dos povos indígenas, mas também interagir com eles, de maneira criativa, em diálogo com as vanguardas europeias, no Movimento Antropofágico, responsável por obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, nas artes visuais, por quadros como A cuca e o Abaporu, de Tarsila do Amaral. Os modernistas buscaram nas culturas indígenas um antídoto libertário à sociedade patriarcal, católica e aristocratizante de nossas elites provincianas. O recurso utilizado pelos modernistas para dessacralizar os valores e práticas discriminatórias daquela sociedade, nascida da monocultura, da catequese e do escravismo foi o escracho, o deboche, o sarcasmo. Assim, Oswald de Andrade escreve em seu poema Erro de português: “Quando o português chegou / debaixo de uma bruta chuva / vestiu o índio / que pena! fosse uma manhã de sol / o índio tinha despido / o português”. Mário de Andrade, por sua vez, irá recuperar os mitos indígenas, reinterpretados sob viés paródico – como o Curupira, Ceiuci, Ci, a Mãe do Mato, as icamiabas –, em seu romance-rapsódia Macunaíma, onde a demanda do Santo Graal é substituída pela busca ao muiraquitã, amuleto amazônico roubado por Piaimã, rico fazendeiro de São Paulo que gostava de comer carne humana.
Todo esse breve histórico da presença indígena na literatura brasileira foi necessário para situarmos o novo livro de Edir Pina de Barros, Lâminas da barbárie (Kotter Editor), poeta e antropóloga, que desenvolve o tema de maneira original e consistente. A obra é dividida em três partes, Conquista, Barbárie e Bakairi, em que a autora desenvolve, em seu percurso criativo, temas como a tomada das terras indígenas, o genocídio, a perda da identidade cultural, a transformação do meio ambiente pelos interesses econômicos, o ocultamento da história das nações indígenas, usando para isso as mais diversa estruturas formais, como o soneto camoniano, o poema em prosa e o pantum –composição poética oriunda da Malásia, com os versos divididos em quartetos e as rimas cruzadas. Nesse gênero pouco praticado em nossa literatura, Edir Pina Barros escreve:
MUTAÇÕES (Pantum) Um mar de soja é tudo o que se vê agora ali, nos campos do cerrado, não resta mais sequer um pé de ipê nem olhos d’água, tudo foi arado; agora ali, nos campos do cerrado, não correm mais riachos transparentes, nem olhos d’água, tudo foi arado de soja e sorgo, viçam as sementes; não correm mais riachos transparentes, nem lambaris pequenos, mas ladinos, de sorgo e soja, viçam as sementes; por conta da ganância, desatinos; nem lambaris pequenos, mas ladinos, porque foram as matas derrubadas, por conta da ganância, desatinos, secaram os riachos, as aguadas; porque foram as matas derrubadas, não mais se existem bichos pequeninos, secaram os riachos, as aguadas onde pescavam homens e meninos; não mais existem bichos pequeninos, nem peixes não existem mais nos rios onde pescavam homens e meninos, (os leitos estão secos, tão sombrios); nem peixes não existem mais nos rios - piquiras, lambaris ou matrinxãs – os leitos estão secos, tão sombrios, nas beiras não se têm panapanãs; piquiras, lambaris ou matrinxãs, não buscam, rio acima, seus berçários, nas beiras não se têm panapanãs nem cantam juritis, japus, canários; não buscam, rio acima, seus berçários, os peixes que passavam reluzentes, nem cantam juritis, japus, canários. que, outrora, ali viviam tão contentes; os peixes que passavam reluzentes, nos rios desses povos milenares, que, outrora, ali viviam tão contentes, no seu sagrado chão, antigos lares; nos rios desses povos milenares, (quem olha não entende ou mesmo crê) no seu sagrado chão, antigos lares, um mar de soja é tudo o que se vê!
Em versos impecáveis, com métrica de dez sílabas e ritmo binário, a poeta registra, com clareza cabralina, a mutação geográfica imposta na região do cerrado pelos reis da soja, onde “ não resta mais sequer um pé de ipê / nem olhos d’água, tudo foi arado”. Mutação geográfica que traz consequências para todo o ecossistema, pois agora não há “nem lambaris pequenos, mas ladinos, / porque foram as matas derrubadas, / por conta da ganância, desatinos, / secaram os riachos, as aguadas; / porque foram as matas derrubadas, / não mais existem bichos pequeninos, / secaram os riachos, as aguadas / onde pescavam homens e meninos”. O impacto humano e cultural dessa cruel metamorfose é sintetizada com sutileza na última estrofe: “nos rios desses povos milenares, / (quem olha não entende ou mesmo crê) / no seu sagrado chão, antigos lares, / um mar de soja é tudo o que se vê!”. A vocação colonial e semicolonial do Brasil para a monocultura destinada à exportação, tema abordado por Gilberto Freyre em seu clássico Casa grande & senzala, é aqui sintetizado de modo lapidar pela poeta, que na segunda seção do livro, Barbárie, faz o relato do assassínio das comunidades indígenas, iniciado em 1500 e continuado até os dias atuais. Um morticínio humano e cultural, como a autora registra no primeiro poema da série (sem título):
I
Quantas balas
em cinco séculos
para exterminar
mais de mil povos?
Bugreiros, capangas,
batedores de mato,
correrias e chacinas,
“guerras justas”, álcool.
II
Quantas balas
no tekoha sagrado
dos Guarani-Kaiowá?
Nem Ñanderu sabe.
Milícias encapuzadas
fecham o cerco,
acuam, matam
como se matam bichos.
Nesta composição, como em outras do volume, Edir Pina de Barros utiliza de forma expressiva, quase mântrica, palavras como tekoha ou tekoa, termo que significa o “lugar onde os Kaiowa realizam o seu modo de ser, espaço geográfico em que se realiza a vida econômica, social, política e religiosa”, conforme nota da própria autora. Em outra composição, agora escrita em prosa, a autora nos remete à quase invisibilidade do massacre dos Akroá-Gamella, em timbre seco de crônica jornalística, como em algumas peças de Manuel Bandeira:
Luta desumana, desigual. Duas centenas de homens com armas de fogo, facões, pedaços de pau, contra trinta homens, mulheres, crianças, correndo e caindo no pasto: vinte e dois feridos. Um foi baleado no tórax, na perna, golpeado na testa e viu serem decepadas as suas duas mãos. Outro, ferido à bala, depois de muitas pauladas teve sua mão direta arrancada por golpe certeiro de facão. Seus joelhos foram cortados nas articulações para que não pudessem correr, como se faz com búfalos e bois que invadem roça dos outros na baixada maranhense. O agressor relatou que precisou “pisar em suas pernas para retirar o facão que ficou cravado no osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore”. Ribamar não dança mais, a sua mão reimplantada não lhe pertence mais: não bate tambores rituais, não caça-pesca-planta, não tem forças para nada, nada suporta, apenas dói.
Na terceira seção do livro, por fim, Edir Pina de Barros poetiza a saga dos bakairi, grupo indígena que habita o centro de Mato Grosso, em particular as terras indígenas de Santana (Iemârire) e Bakairi. Numa sequência de poemas numerados, sem título, a poeta nos apresenta a uma insólita paisagem onde “Nenhuma fruta é a mesma / que mãos estranhas colhem. / Nenhuma pedra é a mesma / que outros olhos veem. / Tudo, tudo é diverso. / Vê-se a Serra Azul outro mundo, outro universo. Não só se vê o diverso / escuta-se o diverso / porque as falas são outras. Os mapas são outros, / outras são as águas / outra língua e pensar. / As correlações são outras, / as traduções são outras, / e o tempo é circular”. Nessa terra de radical estranheza, devastada pela sanha do saque, a magia e o mito insistem em existir, apesar da cruz e da espada, como lemos nesse belíssimo poema em prosa de Edir Pina de Barros:
HOMEM-JAGUAR
Em nada lembrava o homem da noite anterior. Era outro quando evocou seu poder xamânico na kâti pouco iluminada. Com assovio agudo invocava seus piajes. Dialogava com senhores de vários domínios e de poderes diversos. Entre nuvens de fumaça se debruçava sobre a rede de algodão. Lutava para curar a criança em febre. Atravessara os reinos sombrios dos rios subterrâneos. Cortara os ventos e campos à procura de uma de suas almas perdidas. Em transe, falara a língua das onças e dos mortos para salvar sua vida. Amanhecera. Agora estava ali, sentado no banco zoomorfo. O olhar perdia-se no chão do taséra. Daquele homem-jaguar, poderoso e altivo, nada restara. O dia trouxe consigo a realidade do jugo colonial.
Numa leitura intertextual, comparativa, poderíamos comparar este poema, por sua perfeição formal e riqueza de imaginário, a certas composições de Josely Vianna Baptista – outra estudiosa de mitos brasileiros e ameríndios – em livros como Roça barroca, e ainda aos orikis iorubás traduzidos por Antônio Risério, em seu livro essencial Oriki Orixá, dois marcos da etnopoesia no Brasil, porém, há aqui um elemento diferenciador: ao lado da recuperação da fala do outro, em toda a sua beleza e singularidade, da recuperação de sua língua, de seus deuses, cantos e danças, temos o olhar contemporâneo de quem registra, para a posteridade, o brutal assassinato de centenas de povos da floresta, os motivos econômicos por trás do morticínio e o silêncio ruidoso daqueles que têm olhos para ver, e não veem. O livro de Edir Pina de Barros não é apenas uma bela reunião de poemas, mas uma mensagem dentro de uma garrafa jogada ao oceano, para ser descoberta, quem sabe, em algum futuro mais feliz para a nossa nação.
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